Em outubro de 1517, o padre e teólogo alemão Martinho Lutero publicou as suas “95 Teses”, uma série de frases na qual contestava práticas e interpretações da Igreja Católica.
Esse é considerado pela maioria dos historiadores como o marco zero da Reforma Protestante. Lutero é o principal líder do movimento que se espalhou por diversas partes da Europa no século 16 e acabou por redesenhar o mapa religioso do continente, antes predominantemente católico.
Lutero ganhou apoio de religiosos que se identificavam com suas ideias reformistas, mas também de governantes e outros líderes políticos, muitas vezes interessados em que o papa tivesse menos poder numa Europa ainda fragmentada, com Estados soberanos nascendo.
Entre tantos apoiadores, um deles esteve presente no dia a dia de Lutero, nos últimos 20 anos da vida do teólogo. Na verdade, era uma apoiadora, chamada Katharina von Bora, ex-freira alemã que foi casada com Lutero. Bora nasceu em 1499 em uma família empobrecida da nobreza alemã. Ainda criança, começou a receber educação formal em um convento católico, onde foi alfabetizada, aprendeu latim e música. Bora prestou votos e virou freira. A partir das “95 Teses”, em 1517, os pensamentos de Lutero foram ganhando força pela Europa. Todo o clero passou a ter contato com as ideias do teólogo alemão, criticando-as ou apoiando-as, pois eram o grande acontecimento da Igreja na época.
Mesmo na clausura de um convento, Bora teve contato com as críticas de Lutero e se identificou com elas. Junto com outras freiras também interessadas na Reforma, conseguiu se comunicar com religiosos próximos a Lutero e arquitetaram uma fuga em 1523, à noite, dentro de uma carruagem que transportava peixe.
O grupo que ajudou as freiras a fugirem também passou a buscar pretendentes para elas — naquela época, mulheres solteiras carregavam um forte estigma social e tinham poucas chances de se sustentar financeiramente.
Bora negou pedidos de casamento e disse que se casaria apenas com Lutero ou com Nicolau von Amsdorf, também teólogo reformista. Ela então se casou com Lutero em 1525.
Na época do casamento, Lutero já havia sido excomungado (expulso) da Igreja Católica pelo papa Leão 10º, que o considerava subversivo, após se negar a revogar as suas contestações e queimar um documento papal em público. Com apoio político, Lutero evitou a pena de morte.
O casamento entre uma ex-freira e um ex-padre não era bem visto por algumas pessoas do círculo mais próximo de Lutero, que temiam um escândalo que enfraquecesse o movimento reformista. Outro grupo defendeu o matrimônio, pois seria um rompimento definitivo entre a Igreja Católica e Lutero, ao contrariar a norma do celibato.
Anos antes, Lutero já havia escrito a favor do casamento de clérigos, mas não havia se dedicado a procurar uma esposa. A proposta partiu de Bora.
Estudiosos indicam que o casamento dos dois foi importante, na tradição cristã protestante, para consolidar o casamento de líderes religiosos, o que é proibido no catolicismo. Foi um precedente poderoso por se tratar do maior líder protestante. Eles tiveram seis filhos.
Os adversários de Lutero tentaram utilizar Bora como um “ponto fraco”, a fim de prejudicar a credibilidade dele perante os cristãos. Ela foi tachada de alcoólatra, interesseira e vulgar por quem fazia propaganda anti-Lutero. Também disseram que ela tinha filhos fora do casamento. Usaram ainda o fato de ser uma ex-freira, algo escandaloso para a moral da época, como um ataque ao movimento da Reforma.
O lar dos dois, em Wittenberg (Alemanha), passou a servir não só como residência. Eles ofereciam abrigo a cristãos perseguidos por apoiar as ideias reformistas, recebiam personalidades políticas interessadas em falar com Lutero, promoviam encontros para congregar intelectuais e líderes da Reforma, ofereciam pensionato para estudantes, entre outras atividades.
A grande responsável por administrar tantos eventos era Bora. Além disso, também comandava as finanças da casa e da propriedade, na qual que produziam alimentos, criavam animais e também cultivavam um pomar.
Bora também participava das discussões dos intelectuais da Reforma, em Wittenburg, sobre religião e política. Tratou algumas vezes sobre as publicações do marido com seus editores, insistiu que ele escrevesse uma resposta ao padre e teólogo holandês Erasmo de Roterdã, um dos grandes críticos de Lutero. Ela detinha, portanto, uma posição e prestígio raros para uma mulher na Europa do século 16.
O pensamento de Bora é pouco conhecido pois não restaram muitos de seus escritos. Sabine Kramer, historiadora alemã que fez sua tese de doutorado sobre Bora, disse à revista National Geographic que, nas transcrições e publicações dos debates da época sobre a Reforma Protestante, muitas das contribuições de Bora foram retiradas ou atribuídas a homens.
Lutero morreu em 1546, aos 62 anos, em Eisleben, sua cidade natal. Em seu testamento, deixava tudo para a esposa. Isso ia na contramão das leis da época, que estabeleciam que deveria haver um homem entre os herdeiros. Katharina von Bora morreu em 1552, aos 53 anos, na cidade de Torgau, depois de deixar Wittenberg sucessivas vezes após a morte de Lutero, por razões como guerras, surto de doenças e dificuldades financeiras.
Escrito por Matheus Pimentel em 24 Out 2017.
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